As Raízes Budistas de Mindfulness

AS RAÍZES BUDISTAS DO TREINO EM MINDFULNESS:
UMA VISÃO DE PRATICANTE[1]

Edel Maex

Resumo. O livro de Jon Kabat-Zinn, Viver a Catástrofe Total, habilmente traduziu conceitos Budistas tradicionais para uma linguagem cotidiana moderna, de modo a torná-los acessíveis ao Ocidente. Foi uma sacada de gênio retirar o treino de mindfulness do contexto Budista, mas o risco disso é o de, ao invés de abrir uma porta para o Dharma (o ensinamento Budista), fechar uma porta que conduz a uma vasta riqueza deste contexto que está preenchido de práticas e insights valiosos. Este artigo pretende “reverter” a tradução de alguns conceitos de mindfulness de volta para conceitos Budistas básicos (em um movimento contrário ao do primeiro passo dado por Jon Kabat-Zinn) para tornar a literatura Budista mais acessível aos professores de MBSR/CT que estão menos familiarizados com as tradições Budistas e, então, nos permitir reconectar com alguns tesouros que estão presentes nas raízes desta prática. O artigo transita livremente entre textos e conceitos de diferentes tradições Budistas quando elas forem relevantes à empreitada, bebendo na fonte da lógica escolástica do Cânone Páli, nas metáforas dos sutras Mahayana e nos paradoxos dos koans Zen.

            Anos atrás, quando eu estava terminando a minha formação como psiquiatra, eu me vi cara a cara com uma grande e importante questão: como eu poderei sobreviver com o confronto diário com tanta dor, ansiedade, angústia, traumas, perdas…? Eu tinha de encontrar um meio de velejar com segurança entre dois rochedos perigosos. De um lado, estava o risco de me ver estupefato diante de toda aquela dor, emoção e sofrimento e me esgotar completamente. Do outro lado, o perigo de suprimir meus próprios sentimentos e me tornar frio, objetivo, indisponível e intocado pela dor dos meus pacientes.

            Conforme eu buscava uma resposta, uma coisa levou à outra e eu descobri a meditação Zen. Esta era a resposta para a minha pergunta. Claramente, meditação era “minha praia”. Eu aprendi muito com ela. Não só ela me formou na minha maneira de trabalhar, mas também na minha maneira de viver a minha vida.

            Depois de cerca de 10 anos, eu comecei a sentir algo como “Isto não é justo. Eu estou guardando o melhor para mim.” O problema é que eu não fazia ideia de como apresentar algo como a meditação Zen em um contexto psicoterapêutico. Não dá para simplesmente começar a praticar meditação Budista em um hospital! E como você pode explicar para uma pessoa, que está procurando apenas algo para ajudar com a sua própria dor, que ela deve sentar em silêncio por meia hora e não esperar nada daquilo? O método Zen nem sempre é muito acessível.

            Eu comecei experimentando costurar alguns elementos da meditação no meu trabalho. Então, um dia, uma pessoa me perguntou: “você não conhece o trabalho de Jon Kabat-Zinn?” Eu nunca tinha ouvido falar dele antes, mas logo pesquisei e encontrei seu livro – ainda intocado – na biblioteca do instituto onde eu estava trabalhando. Eu me dei conta de imediato “Isto vai me poupar dez anos de trabalho!” Jon Kabat-Zinn veio de um contexto parecido com o meu e, com as mesmas motivações que eu, criou um programa de redução de estresse. Este programa estava sendo usado em um hospital e sendo submetido a uma avaliação científica exaustiva que vinha demonstrando que ele era uma ferramenta aceitável no mundo da medicina. Eu percebi que eu não precisava redescobrir a roda. Eu entrei em contato com Jon Kabat-Zinn e comecei um programa de treinamento em oito semanas baseado no seu trabalho. Foi o primeiro de muitos.

            No prefácio do livro Full Catastrophe Living[2], Thich Nhat Hanh descreve o livro como uma porta do Dharma para o mundo, assim como do mundo para o Dharma.[3] Jon Kabat-Zinn habilmente traduziu conceitos Budistas tradicionais para uma linguagem cotidiana moderna, de modo a torná-los acessíveis ao Ocidente. Se não fosse o prefácio de Thich Nhat Hanh, a origem Budista do livro provavelmente passaria despercebida por muitos leitores. Thich Nhat Hanh é um dos principais professores Budistas no Ocidente e suas poucas palavras certamente atraíram muitos praticantes Budistas para este livro e para a aplicação da mindfulness em um contexto clínico. Este trabalho deu origem à primeira geração de professores de MBSR.

            Jon Kabat-Zinn não só se baseou na tradição Budista, como também na própria tradição científica na qual era treinado, gerando legitimidade para o seu trabalho no mundo da ciência e da medicina. Isto atraiu muitos pesquisadores proeminentes para o campo da mindfulness e resultados estimulantes vieram das pesquisas. O que vemos hoje é uma segunda geração de professores de mindfulness, muitos dos quais não têm qualquer contexto no Budismo, mas com uma prática pessoal bastante sincera. Foi uma sacada de gênio retirar o treino de mindfulness do contexto Budista, mas o risco disso é o de, ao invés de abrir uma porta para o Dharma (o ensinamento Budista), fechar uma porta que conduz a uma vasta riqueza deste contexto que está preenchido de práticas e insights valiosos.

            Muitas questões que surgem hoje nas pesquisas de mindfulness já têm um longo histórico na literatura Budista enquanto um tópico de discussão e experimento. Para dar um exemplo: no Sutra do Lótus uma garota de oito anos de idade, sem nenhuma experiência com meditação, subitamente atinge o pleno despertar.[4] Esta passagem certamente coloca em cena a questão de quanto a prática formal é necessária (e na época foi uma severa crítica à atitude chauvinista do monasticismo essencialmente masculino). Alguns destes textos são pontualmente precisos no uso de linguagem filosófica, como em grandes parcelas do Cânone Páli. Outros textos, como o Sutra do Lótus ou o Livro Tibetano dos Mortos, parecem um tanto mágicos e obscuros e é difícil imaginar que eles contenham as raízes do treino em mindfulness.

            Este artigo pretende “reverter” a tradução de alguns conceitos de mindfulness de volta para conceitos Budistas básicos (em um movimento contrário ao do primeiro passo dado por Jon Kabat-Zinn) para tornar a literatura Budista mais acessível aos professores de MBSR/CT que estão menos familiarizados com as tradições Budistas e, então, nos permitir reconectar com alguns tesouros que estão presentes nas raízes desta prática. Eu me permito transitar livremente entre textos e conceitos de diferentes tradições Budistas quando eles parecerem relevantes a esta empreitada. Não tenho a menor pretensão de ser exaustivo em minha análise, mas me sentirei feliz em oferecer ao menos um sabor desta tradição, recordando do que o Buda disse: “Assim como o oceano contém muitos tesouros, mas apenas um sabor, que é o do sal, assim também os ensinamentos contêm muitos tesouros, mas apenas um sabor, que é o da liberação”.[5]

            Upaya

                        O que Jon Kabat-Zinn fez está alinhado com uma abordagem longínqua do Budismo chamada upaya, traduzida como “meios hábeis”. O Budismo não é dogmático; não é uma crença. É uma prática a ser aprendida e quando lemos os textos mais antigos, próximos do Buda histórico, percebemos que ele foi um excelente professor. O Buda sempre se dirige à pessoa com quem ele está falando com base na linguagem e referências desta pessoa. Isto produziu um corpo literário extremamente rico no qual a mesma mensagem é reelaborada de muitas formas diferentes. Os professores Budistas posteriores ao Buda seguiram desse modo, de forma que você vê o Budismo Chinês sendo explicado de maneira bem “chinesa” e o Budismo Tibetano em um estilo Tibetano. A isso se deve a proliferação de estilos, textos e cores.

            Jon Kabat-Zinn não fez nada além de continuar a tradição e reafirmar o método de modo que ele se tornasse aceitável ao mundo da ciência e da medicina clínica. O desenvolvimento da MBCT novamente continua com a mesma tradição, reformulando o mesmo ensinamento nos termos da Terapia Cognitivo Comportamental (TCC) e adaptando-o aos sofrimentos das pessoas com depressão recorrente. Desenvolvimentos posteriores farão a mesma coisa. Tudo isso, tradicionalmente Budista, é fruto de upaya.

            Upaya é um tema importante no Sutra do Lótus. Ele conta a história de um homem muito rico, cujas crianças têm muitos brinquedos para brincar. De repente, ele percebe que a casa está em chamas e que as crianças estão lá dentro brincando. Ele grita “Fogo! Fogo!”, mas as crianças pensam que ele está só brincando e continuam com seus brinquedos. No fim ele diz: “Venham para fora rápido! Eu comprei brinquedos novos incríveis para vocês!” As crianças, então, saem da casa e escampam do incêndio.[6] Este texto compara alguns dos ensinamentos do Buda a brinquedos destinados a serem meios hábeis (upaya) para nos salvar do sofrimento, destituídos de qualquer significado intrínseco. Este sutra critica uma tendência da época de doutrinação excessiva, que faz perder o verdadeiro objetivo da prática.

            Hipóteses de pesquisa não são geradas aleatoriamente. Elas sempre partem de um palpite esclarecido. Para um palpite ser esclarecido, ele deve partir de recursos científicos, clínicos e Budistas. Isto ajuda a pesquisa a gerar hipóteses que são significativas e úteis, nos prevenindo de nos perder em estudos de brinquedos que não têm significado intrínseco.

            Quatro Nobres Verdades

            No Kalama Sutta do Cânone Páli perguntam ao Buda a seguinte questão: “Há tantos professores por aí – em quem devemos acreditar?” Ele responde: “Não se apoie em tradição, escritura, autoridade ou filosofia. Apenas quando você perceber por sua própria conta que uma prática conduz ao sofrimento ou ao bem-estar, só então você deve ou rejeitá-la ou aceitá-la”.[7] Esse texto ilustra que o sofrimento está no centro de todas as coisas. O Dharma é sobre sofrimento e nada mais. Não é surpresa que façamos uso dele em nossa prática clínica!

            A isso chamamos de Primeira Nobre Verdade:[8] a observação de que existe o sofrimento. Não é um dogma. Não quer dizer que tudo seja sofrimento. Ela só atesta o fato observável do sofrimento. Também explica porque é genérica: não é sobre dor crônica, depressão ou distúrbios alimentares, mas sobre o sofrimento. Então pretende ser útil em todas as condições que implicam em sofrimento. No entanto, é claro que upaya nos ensina a adequar esta verdade à situação específica deste sujeito em específico. Outro aspecto interessante desta passagem no Kalama Sutta é que o Buda explicitamente apresenta o Dharma enquanto uma hipótese testável. Não admira o quanto muitos cientistas se interessam por Budismo.

            A Segunda Nobre Verdade é sobre a origem do sofrimento e a Terceira sobre o fim do sofrimento a partir da cessação de sua origem. A origem pode ser identificada na expressão “sede” (Páli tanha). Esta sede, por sua vez, tem origem nas sensações (vedana). O vínculo entre sensação e sede não é absoluto. A sensação pode não culminar em sede.

            Por exemplo: imaginemos que eu me apaixone pela esposa do meu vizinho. De certa forma, não há nada de errado nisso, até o momento em que eu definitivamente deseje possuí-la, em que eu comece a considerar a minha vida insignificante sem ela, em que eu estiver disposto a fazer qualquer coisa para… É aí que o sentimento se transforma em “sede” e podemos nos assegurar que muito sofrimento surgirá a partir de então. Isso é parte da cadeia de eventos que resulta em muitos suicídios ou assassinatos. O mesmo acontece com pensamentos, emoções e ações. No momento em que eu me identifico com eles, no momento em que eu passo a persegui-los, o sofrimento surge.

            A área de mindfulness na medicina e saúde modernas tem uma linguagem muito bonita para descrever este processo. Nós falamos de reatividade ao estresse e resposta ao estresse. Reatividade é quando a sede toma conta, e a resposta é possível desde que uma sensação ou pensamento permaneça enquanto sensação ou pensamento e nós tenhamos condições de manter consciência sobre eles, sem automaticamente reagir a eles. Nós também chamamos este processo “ver um pensamento como um pensamento, uma emoção como uma emoção” de consciência metacognitiva. Pesquisas indicam que este é um elemento chave para que o treino em mindfulness obtenha sucesso[9].

            O caminho óctuplo

            Os oito elementos do caminho óctuplo não são uma simples sequência. Eles conversam entre si, sendo mutuamente inclusivos. Eles são chamados de “corretos”, mas o termo sânscrito (samma/samyak) é derivado da teoria musical e na verdade significa “harmonioso”. Eles são “corretos” no sentido de serem afinados uns com os outros para formar uma escala ou acorde. Uma vez que oito elementos são difíceis de memorizar, eles são geralmente sumarizados em três grupos: compreensão, virtude e meditação.

            Compreensão (prajna) é a entrada para o caminho. Tem sido minha experiência que pessoas procurando ajuda em contextos clínicos e de saúde não se sentirão motivadas para engajar na MBSR/CT se não houver algum nível de compreensão e confiança no porquê eles devem fazer isso e por que será útil.

            Virtude (sila) é provavelmente o elemento que mais nos inquieta. A ciência não deveria ser livre de valorações? A mindfulness com certeza não é. Sem gentileza, respeito e dignidade, a mindfulness não é de modo algum correta (samma). Estas virtudes são tanto pré-requisitos, elementos e resultados do caminho. Ética no Budismo é completamente diferente do que estamos acostumados no Ocidente, uma vez que é definida em relação ao sofrimento: bom é o que conduz ao bem-estar e mal é o que conduz ao sofrimento. Colocada nesses termos, mesmo a ética se transforma em uma hipótese testável. E é claro, ela é uma pedra angular na medicina Ocidental, quando no Juramento de Hipócrates encontramos a injunção, primum non nocere.

            Meditação (samadhi) é o terceiro grupo. Meditação é muito mais popular no Ocidente do que no Oriente. Nossa tendência é dar tanta ênfase neste aspecto que a afinação com os outros elementos do caminho corre o risco de se perder.

            A meditação Budista é uma interação entre samatha e vipasyana. Samatha é o parar e se acalmar. Diz respeito à ação de parar nossas atividades habituais e trazer nossa atenção para algo simples. É parte integral da resposta de relaxamento de Benson.[10] O próximo passo é vipasyana: observar, enxergar claramente. Tal relaxamento que acontece durante o treino em mindfulness não é o fim em si mesmo, mas um passo na direção da observação, da consciência metacognitiva. A meditação é a situação laboratorial. É o local de onde nós observamos a nossa mente trabalhando e aprendemos a mudar da reação automática àquilo que se apresenta, para uma resposta apropriada e salutar, que é a da sabedoria e da compaixão.

            A mindfulness correta (samma-sati) encontra aqui o seu lugar, mas o significado do termo “mindfulness” expandiu nos últimos anos, ultrapassando o escopo de seu sentido original.

            O que fica claro é que a coisa toda não termina na almofada de meditação. Daquilo que descobrimos na meditação, advém a compreensão. Desta compreensão advém gentileza, que por sua vez motiva e abastece a prática de meditação, o que aprofunda ainda mais a compreensão, que conduz a…. é um ciclo infinito.

            Karma

            O tópico quente de discussão na época do Buda era o karma. A palavra karma significa ação intencional, comportamento. De acordo com os textos clássicos, o karma pode ser gerado por corpo, fala ou mente (em uma linguagem que soa surpreendentemente familiar ao terapeuta cognitivo dos dias atuais). A discussão na época era sobre as consequências do nosso comportamento. Havia, dentro outras, uma vertente de pensamento niilista que negava que o comportamento tinha qualquer consequência e afirmava que a vida era mais ou menos arbitrária. Outros defendiam uma visão materialista, dizendo que o comportamento tinha apenas consequências materiais, mas não éticas ou psicológicas. A posição do Buda era bastante clara: “Eu sou o detentor das minhas ações (karma), herdeiro das minhas ações, nascido das minhas ações, vinculado às minhas ações e terei as minhas ações como meu árbitro. O que quer que eu faça, bom ou ruim, é isto que herdarei”.[11] O Buda tinha uma visão de atividade quanto ao self – nós somos o que fazemos.

            As Quatro Nobres Verdades são, portanto, uma teoria de karma. Elas afirmam que há um problema e tem algo que podemos fazer a respeito. Nossas ações importam. A fórmula termina com a explicação do que deve ser feito.

            Por este motivo, um critério para participar na MBSR/MBCT é algum nível de abertura para o exame da questão do controle sobre o seu comportamento, para dar seguimento à exploração da possibilidade de que a sua situação não é inteiramente dependente das condições externas – de que você pode assumir algum nível de responsabilidade por si mesmo. Algumas vezes os pacientes vêm com expectativas que mindfulness vai agir sobre eles como uma espécie de droga. Nesse sentido, eu devo adiantar: mindfulness não fará nada por você, mas pode lhe ensinar como fazer algo por si mesmo. Para muitos participantes, é exatamente isto que eles estão procurando e o de que mais necessitam – uma forma de participar de sua própria saúde e bem-estar. Eles se sentem felizes em finalmente encontrar algo que podem fazer por si mesmos, ao invés de ficar sempre impotentes diante do apoio em médicos, drogas e outras condições.

            Pacientes com depressão clínica muito severa ou psicose podem não ter condições de, no momento, assumir responsabilidade por seu comportamento e, neste caso, o treino em mindfulness pode ser contraindicado. No entanto, mesmo pessoas sofrendo de psicose podem ser ajudadas a encontrar uma maneira de assumir algum controle sobre alucinações perturbadoras, como o trabalho de Chadwick e colegas revelou.[12]

            O treino em mindfulness em um contexto clínico de fato acaba sendo uma forma um tanto empoderadora de trabalhar com as pessoas. Através do meu trabalho com mindfulness, eu comecei a me dar conta que, como clínico, eu fui treinado a subestimar as capacidades das pessoas. Ao ler um texto como o Sutra do Lótus eu fui tocado pela compreensão vasta que entende que cada um de nós tem o potencial para se tornar um Buda. Começar um novo grupo de MBSR ou MBCT não é começar com um grupo de pessoas com problemas mais ou menos graves. De fato, é o começo de um grupo de Budas em potencial. Pelo menos é assim que eu enxergo e sei que isto também é verdade para muitas pessoas que ensinam intervenções baseadas em mindfulness.

            Prajna-karuna

            A pesquisa recente nos mostrou os efeitos benéficos da meditação (samadhi). Nós estamos adquirindo uma compreensão crescente (prajna) dos mecanismos por trás destes benefícios. O que é menos abordado na área de pesquisa em mindfulness é sila, virtude. O fato de ser menos explícita, não significa que ela não esteja presente. Ela não pode estar ausente.

            No Budismo, o fruto da prática é geralmente designado como prajna-karuna (karuna significando compaixão). Desde os primórdios do Budismo, o cognitivo e a ética andam de mãos dadas.[13] Prajna e karuna não são duas coisas distintas. Elas são uma só e mesma coisa. Os elementos cognitivo e ético são um todo inseparável. No Zen se diz que a compreensão e a compaixão são relacionadas uma com a outra como a chama é com o calor, uma em função da outra. A compaixão naturalmente emerge da compreensão. Sem compaixão, a compreensão não é possível.

            Como podemos explicar isso em termos psicológicos mais familiares? Consciência metacognitiva é uma representação de prajna. Mas eu não tenho como estar metacognitivamente consciente das minhas emoções de tristeza, sem trazer muita gentileza para estas emoções e para mim mesmo. Ser honesto consigo mesmo deste modo é parte de estar aberto a tudo. E nem sempre tudo é belo e vibrante.

            Pode acontecer de eu me sentar na almofada de meditação ao entardecer e de repente me lembrar de algo muito estúpido que fiz durante o dia, um erro, algo ridículo… Estava tão ocupado que me esqueci completamente do que fiz. Então, neste fim de dia, eu me lembro disso na almofada e não há escapatória. Seria cruel me conscientizar da minha própria estupidez sem gentileza. Nós precisamos de gentileza para ser possível e tolerável sustentar uma atenção receptiva e aberta. Eu preciso renunciar aos julgamentos ríspidos e às repreensões a meus pensamentos e sentimentos. A ação de estar cognitivamente consciente é impossível sem uma postura de compaixão.

            Nesse sentido, a consciência exige gentileza, mas haveria também uma consequência da consciência metacognitiva? A ética da consciência não é de modo algum moralizante. Imaginemos que eu esteja com muita, muita raiva – tanta que poderia matar alguém. A minha raiva estreita minha consciência. Neste estreitamento habita um grande perigo. Quando, ao invés de estreitá-la, eu consigo abri-la e encarar a minha raiva e examiná-la sem agir sob o seu domínio, impulsivamente – quando eu consigo perceber o meu pensamento e julgamento trabalhando, sem tomá-los como realidades – o que vai acontecer?

            Haverá uma maior consciência da situação, da interdependência dos meus próprios motivos, da perspectiva do outro, das causas e consequências das minhas emoções e escolhas, e de todo o sofrimento envolvido. A compaixão surge da consciência do sofrimento – em mim e no outro – e de nossa interconexão. O assassinato, muito provavelmente, não vai acontecer. Uma consciência mais sensível e ampla irá muito provavelmente conduzir a uma resposta mais adequada aos meandros da situação.

            Eu descobri que muito frequentemente depois do programa de oito semanas, os participantes se veem mais compassivos diante de animais. Eu ouvi muitos relatos, muitas vezes bem-humorados, de tentativas de salvar aranhas que antes seriam imediatamente esmagadas de maneira irrefletida. A princípio, eu fiquei surpreso de observar esses resultados do treino em mindfulness, especialmente uma vez que nenhum elemento da retórica Mahayana de “salvar todos os seres sencientes” é encontrado no programa. Mas o simples fato de estar mais consciente torna as pessoas mais sensíveis ao sofrimento do menor dos animais. Frequentemente eu era tocado por estas situações.

            É lógico que os pesquisadores cognitivos se aproximam da área de um ângulo cognitivo. Seria maravilhoso se encontrássemos uma maneira de conceituar e investigar melhor os aspectos compassivos da mindfulness. Em um trabalho recente de Paul Gilbert, Compassion Focused Therapy,[14] encontramos um exemplo deste direcionamento.

Ensinando

            Como em muitos aspectos dos ensinamentos, as diferentes tradições Budistas adaptaram o modelo da relação professor-aluno para a cultura onde o ensinamento acontecia. Na MBCT, esta relação entra no mundo da medicina e da psicoterapia. Esta mudança de panorama cultural dá origem a muitas armadilhas.

            O ensino de mindfulness, como no ensino de qualquer outra habilidade, é encarado como uma interação entre a habilidade em si, a capacidade do professor e a capacidade do aluno. O ensinamento deve ser cuidadosamente ajustado à capacidade do aluno. O aluno é ele mesmo um elemento tão definitivo na relação quanto o professor.

            Não há nenhum elemento da prática de mindfulness em que o treinador é mais desafiado do que o da investigação e do diálogo. Ser um terapeuta muitas vezes é um impedimento ao ensino de mindfulness. É a minha experiência no ensino e na supervisão de treinadores de mindfulness que terapeutas e médicos geralmente cedem ao seu instinto de oferecer conselhos ou ser amáveis, amigáveis e amparadores, de modo que muitas vezes desempoderam a pessoa. O treino em mindfulness, ao contrário, reconhece a responsabilidade da própria pessoa por seus pensamentos, emoções e prática.

            A investigação durante a aula de mindfulness é apenas uma das técnicas para ensinar mindfulness, do mesmo modo que o escaneamento do corpo ou o intervalo de três minutos de respiração. A armadilha mais comum é enxergar a investigação como uma exploração psicoterapêutica, destinada a enquadrar ou solucionar um problema.

            Durante o processo de investigação o professor é continuamente (ainda que não intencionalmente) desafiado, e é fácil reagir ao invés de responder. Se surgir medo ou raiva ou tristeza, o professor se envolve com isso com gentileza, sem julgamento, com uma mente aberta. Você aceita enquanto um fato, do mesmo modo que o aluno experiencia sua própria perspectiva. Você reconhece a perspectiva do participante como a perspectiva dele, sem necessariamente concordar ou se identificar com ela.

            Como treinadores, é demandado de nós que encarnemos mindfulness. Nós iremos perceber a tendência de nossa mente de defender, consolar, concordar, contradizer, reagir. O grupo irá nos encarar e se indagar ‘o que ele vai fazer a este respeito?’ Responder sem reagir, ao que quer que surja, nos torna um exemplo no processo de ensino de mindfulness. A nossa forma de responder é guiada pela intenção de ensinar o aluno a se envolver de forma atenta e consciente [mindful] com sua própria experiência. Nós aceitamos o que o aluno apresenta como a sua perspectiva de mundo e ajudamos a clarificar esta experiência.

            O primeiro lugar para aprendermos sobre a investigação é a nossa própria prática de meditação. Sentar ou deitar sem julgamentos e com gentileza, se envolvendo com o que quer que surja, é um treino poderoso. Exatamente a mesma coisa é o que acontece com a investigação.

            Por este motivo é tão difícil ensinar a alguém alguma habilidade que nós não dominamos em algum nível. Tudo começa com a nossa própria prática: “o ensino vem da própria paixão pela prática”, diz Jon Kabat-Zinn. Thich Nhat Hanh, em uma conferência, contou a história de um aluno ciumento que o perguntou: “E quando eu estarei pronto para ser um professor?” Sua rápida resposta foi: “Quando você estiver feliz”. Um ponto de referência sóbrio e uma boa medida de motivação para qualquer um que deseja ensinar mindfulness.

            O Sutra do Lótus tem alguns conselhos tocantes para qualquer professor: “[o professor] deve entrar na sala do Buda, vestir as vestes do Buda e sentar no trono do Buda”. O Sutra explica: “A sala é a grande compaixão; as vestes são a gentileza e a paciência; o trono é a vaziez de todos os Dharmas”.[15] A primeira influência da meditação Zen em minha prática clínica foi que eu aprendi a ver os meus pacientes não como enfermos, mas como seres que sofrem. Compaixão é a resposta espontânea diante do sofrimento. Gentileza e paciência nos ajudam a não reagir automaticamente a comportamentos adversos. Como uma veste, elas nos protegem, mesmo quando o processo de mudança é difícil. Vaziez diz respeito à abertura que nós descobrimos e cultivamos em nossa própria prática. Aponta para o discernimento que reconhece a natureza intrinsicamente insubstancial e vazia de todas as coisas – o fato de elas não serem permanentes e existentes em si mesmas. É deste ponto que tudo começa.

Manejando intervenções

            No vasto tesouro de histórias Budistas, a seguinte pérola é encontrada:

Sempre que perguntavam algo ao Mestre Zen Gutei, ele apenas estendia um dedo. Certa vez ele tinha um jovem atendente a quem um visitante dirigiu uma pergunta – “O que é o Zen que o seu Mestre está ensinando?” O jovem também estendeu um dedo. Ao ouvir esta história, Gutei decepou o dedo do jovem com uma faca. Conforme o jovem saía correndo, esgoelando e em pânico, Gutei o chamou. Quando o jovem se voltou para ele, Gutei estendeu seu dedo. O jovem subitamente atingiu a iluminação.[16]

            Para confortá-lo desde já: esta história nunca aconteceu de fato. Professores Zen não andam por aí carregando facas e muito menos decepando dedos. Este tipo de história didática, chamadas de koans, deliberadamente e com grande senso de humor, desafiam nossas preconcepções.

            Esta história é sobre, entre outras coisas, manejar intervenções. Gutei, em seu ensinamento, parecia obedecer a um protocolo muito simples para sua intervenção: ele apenas estendia um dedo. Mas quando nosso “aprendiz de feiticeiro” segue o mesmo protocolo do seu mestre, ele falha miseravelmente. O mesmo comportamento, ao menos é o que parece, claramente não carrega o mesmo significado. Apenas quando o protocolo é quebrado (o que é simbolizado com o dedo cortado), ele entende o propósito da coisa.

            O comportamento ilustrado neste koan definitivamente não é um protocolo a ser imitado no treino em mindfulness! Mas quando nós nos perguntarmos por qual atitude a investigação hábil poderia ser reconhecida por um observador, esta história nos alerta a não sermos demasiado superficiais em nossa compreensão do que de fato está acontecendo.

Três Joias

            No centro de todas as tradições Budistas está o que nós chamamos de Três Joias: Buda, Dharma e Sangha.

            O Buda originalmente faz referência à pessoa histórica. Em anos posteriores, o significado mudou da pessoa para aquilo que ela representa. Jon Kabat-Zinn às vezes mostra uma fotografia de uma grande estátua do Buda em suas palestras e sugere à audiência que isto não deve ser compreendido enquanto uma deidade, mas como um estado mental particular – o do despertar.

            Dharma é o ensinamento e a prática. Conforme demonstra a história do Budismo, é um processo de contínua reformulação de acordo com as necessidades atuais daqueles à nossa frente.

            Sangha é a comunidade, significando originalmente a comunidade de monásticos (monges e monjas) e se estendendo a todos os envolvidos nesta comunidade. Existe uma forte sensação de que isto não é uma coisa individual ou particular. O grupo é importante. Nós apoiamos uns aos outros quando praticamos juntos. É por este motivo que é tão poderoso ensinar mindfulness em grupos.

            Também temos a comunidade de professores e pesquisadores de mindfulness. Nós também somos uma sangha. Minha esperança é que esta sangha, conforme cresça e se torne mais e mais enraizada na ciência ocidental e na prática clínica, não perca todos os laços com a riqueza de suas antigas raízes Budistas. Ainda há muito o que aprender desta tradição.

            Portanto, quero encerrar este texto, como uma oferenda à sangha, com um belo diálogo entre o Buda e Ananda:

Ananda disse ao Abençoado: “isto é metade da vida sagrada, Soberano: amizade admirável, companhia admirável, camaradagem admirável.”

“Não diga isso, Ananda. Não diga isso. Amizade admirável, companhia admirável, camaradagem admirável é, na verdade, a integridade da vida sagrada. Quando um monge tem pessoas admiráveis como amigas, companheiras e camaradas, é esperado que ele desenvolva e persiga o nobre caminho óctuplo.”[17]

Referências

BENSON, H., B. A. ROSNER, B. R. MARZETTA, e H. M. KLEMCHUK. 1974. Decreased bloodpressure in pharmacologically treated hypertensive patients who regularly elicited the relaxation response. The Lancet 1 (7852): 289–91.

CHADWICK, P., S. HUGHES, D. RUSSELL, I. RUSSELL, e D. DAGNAN. 2009. Mindfulness groups for distressing voices and paranoia: A replication and randomized feasibility trial. Behavioural and Cognitive Psychotherapy 37 (4): 403–12.

GILBERT, PAUL. 2010. Compassion focused therapy. London and New York: Routledge.

KABAT-ZINN, J. 1990. Full castastrophe living: the program of the Stress Reduction Clinic at the University of Massachusetts Medical Center. New York: Dell Publishing.

KEOWN. 1992/2001. The nature of Buddhist ethics. Basingstoke, UK: Macmillan/Palgrave.

REEVES, GENE. Trad. 2009. The Lotus Sutra, a contemporary translation of a Buddhist classic. Wisdom Publications.

TEASDALE, J. D., R. G. MOORE, H. HAYHURST, M. POPE, S. WILLIAMS, e Z. V. SEGAL. 2002. Metacognitive awareness and prevention of relapse in depression: Empirical evidence. Journal of Consulting Clinical Psychology 70 (2): 275–87.

THICH NHAT HANH. 1990. Prefácio. Em Full castastrophe living: the program of the stress reduction clinic at the University of Massachusetts medical center. por J. Kabat-Zinn New York: Dell Publishing.

[1] Edel Maex é um psiquiatra e aluno zen.

[2] Kabat-Zinn (1990).

[3] Thich Nhat Hanh (1990).

[4] Sutra do Lótus, capítulo 12. Existem muitas traduções do inglês do Sutra do Lótus em inglês – uma das mais belas é de Reeves (2009).

[5] Udana, 5.5

[6] Sutra do Lótus, capítulo 3.

[7] Kalama Sutta: Angutara Nikaya, 3.65.

[8] Samyatta Nikaya 56.11.

[9] Teasdale et al., (2002).

[10] Benson et al., (1974).

[11] Anguttara Nikaya, V. 57.

[12] Chadwick et al., (2009).

[13] Keown (1992/2001).

[14] Gilbert (2010).

[15] Sutra do Lótus, capítulo 10.

[16] Mumonkan, caso 3.

[17] Samyutta Nikaya, XLV. 2.

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